O circo mediático
Compare-se a reacção de alguns opinadores ao caso dos vistos gold com a reacção que têm perante o caso José Sócrates. O caso dos vistos gold era gravíssimo porque afectava altos dirigentes do Estado e, pela primeira vez, passava a ideia de que a corrupção chegava às mais altas esferas do nosso Estado. Já o caso José Sócrates, aparentemente, é gravíssimo por causa da violação do segredo da justiça, do timing, da forma como o homem foi detido (sendo que, ao contrário do que dizem, não estava lá nenhuma televisão para filmar a detenção do homem), da condenação do ex-primeiro-ministro na praça pública, da desconfiança que se gera em torno da nossa investigação criminal, e por ai fora. Um tal de Adão e Silva, ontem na SICN, até perdia tempo a explicar que a desconfiança na justiça acentuou-se muito nos últimos quatro anos (o período temporal de quatro anos é brilhante). Explicava o querido sociólogo, gajo que subiu na esfera do comentarismo nacional à pala do seu socratismo, que quando se diz «espero que este caso [contra José Sócrates] seja sólido» está lá presente essa "nova" desconfiança que se instalou perante a justiça. Desconfiemos da justiça, narra-nos Adão e Silva, adepto das narrativas socráticas. Antes isso que desconfiarmos de Sócrates, homem impoluto, querido líder, ex-PM, pessoa cuja possibilidade de ser um vigarista de todo o tamanho e ter usado o seu poder enquanto PM para enriquecer é um pormenor (aproveitemos o caso José Sócrates para debater os problemas da justiça invés de nos centrarmos no caso concreto do ex-PM, portanto). Pormaior e grave mesmo, coisa que secundarizava qualquer problema que a justiça pudesse ter e possibilitadora de inúmeras leituras políticas, isso, só mesmo as suspeitas sobre o gajo do SEF e do Instituto dos Registos e Notariado. Um PM perante esses gajos não é nada. Façamos de conta que isto é a continuação do "caso" Freeport e discutamos o assunto nos mesmos termos da cabala. Enfim: sim, há uma desconfiança na justiça, só não é no sentido que Adão e Silva lhe quer dar, nem apareceu só, nem especialmente, nos últimos quatro anos (pelo contrário, os últimos quatro anos até terão tido alguns casos que, se alguma coisa, vieram transmitir a possibilidade da justiça estar mesmo a mudar para melhor): é essa a desconfiança numa justiça que não consegue atirar para a cadeia com nenhum poderoso, sobretudo quando está em causa corrupção, fraudes e demais vigarices no Estado e na nossa sociedade em geral. É, portanto, a ideia de que há uma justiça para o cidadão comum e outra para gente influente e poderosa (perguntem ao cidadão comum até que ponto pensa que a justiça consegue tocar em Ricardo Salgado). É por isso que quando Armando Vara é condenado, gera-se desconfiança, sim, mas não da condenação em si mesmo, mas de que a condenação de nada servirá porque o homem vai recorrer e acabar por se livrar da prisão. Pode acontecer que Vara não seja mesmo culpado e em recurso consiga a sua justa absolvição, mas, entenda-se, o que vai na mente do cidadão comum é que independentemente da culpa, o amigo de Sócrates acabará em qualquer caso por se livrar da prisão. E porquê que pensará o cidadão comum isto? Terá bases para fundamentar esta crença? Será que o facto de quase ninguém poderoso ser condenado neste país não é base suficiente? Serão todos os poderosos assim tão impolutos? Nem o Oliveira e Costa ainda foi condenado: é isto, e não outra coisa qualquer, que causa desconfiança. Mas, alguma coisa mudou, investigações passaram a existir e poderosos começam a cair nas malhas desta. Antes, nem sequer existia «espero que este caso seja sólido» porque os poderosos nem a braços com a justiça ficavam. Os casos não eram sólidos, nem deixavam de o ser, simplesmente não existiam. Agora, ajudados pela cada vez mais evidente decadência do regime e da podridão que se instalou, lá vão começando a surgir os casos, os podres. Só isso, já é uma mudança para melhor. Contudo, vendo o circo mediático instalado contra a justiça - e, de todos os circos instalados, é esse o circo que mais me preocupa, porque vejo-o como uma forma de tentar condicionar a mesma -, o Isaltino, um dos poucos condenados neste país, num caso que aparenta algumas semelhanças com o que poderá envolver José Sócrates, entretanto, já leva abraços do fundador do PS e, não tarda, está aqui, está a ser dado como exemplo de mais um processo mal conduzido pela justiça que justifica a nossa desconfiança nesta. Investigações? Condenações? A justiça não é credível. Soltem os prisioneiros.